e nunca vi como os outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar das fontes igual à deles;
e era outro o canto, que acordava
o coração de alegria
Tudo o que amei, amei sozinho
Edgar Allan Poe
Ana Leal nasceu a 9 de outubro e desde pequenina mostrou que tinha nascido para a carreira que abraçou aos 18 anos, na Rádio Clube Português.
Da menina dos porquês, Ana tornou-se numa jornalista reconhecida em Portugal e além-fronteiras, contando já com muitos prémios, incluindo o prémio Gazeta, o maior prémio do jornalismo. Estes representam para si o reconhecimento do seu trabalho e do valor do mesmo ao longo destes anos e para Ana este reconhecimento mostra que ela conseguiu mudar um bocadinho as coisas, que é a sua missão nesta carreira.
“Desde a quarta classe, na altura, que dizia que queria ser jornalista”. Mas esse desejo não foi encarado com normalidade no seio de uma família “tradicional”. Viviam-se os primeiros anos da década de 70, com um regime em queda e a ascensão de uma democracia, desconhecida num país pequeno mas enorme nas suas raízes. Nesta época, o ideal era seguir um curso considerado tradicional, como advocacia ou medicina, que não era o que Ana sonhava ser.
Era jornalismo, uma profissão que ainda estava a dar os primeiros passos ao lado de uma democracia jovem, que enchia o coração de Ana. Este sonho fazia com que fosse vista como a “artista da família”.
Desde pequenina que “adorava ler e escrever, fazia muitas perguntas e achava que isso se encaixava numa profissão como a de jornalismo”. Mas, contrariamente ao seu sonho de menina, foi o curso de história que preencheu a sua vida académica, quando ingressou na faculdade do Porto. Sem pensar, adorou este curso, deixando, nos primeiros tempos, de lado o sonho de ser jornalista.
“O meu sonho era ser jornalista” e por isso com 18 anos candidatou-se a uma vaga nos estúdios da Rádio Clube Português e que “curiosamente, era o sítio que eu tinha fascínio em conhecer. Não era televisão”. Era este o mundo que enchia os seus olhos: os estúdios de rádio da Antena 1. “O que nós, crianças, tínhamos no nosso imaginário era conhecer os estúdios da Antena 1 e fui lá que fui parar”. O sonho de volta, agora a vivê-lo na realidade.
A viver o sonho, não deixou de lado o curso. Ao mesmo tempo que o estava a tirar, estava também a trabalhar “à séria” numa redação da Antena 1.
Entretanto, abrem os estúdios da Rádio Norte, no Porto, e Ana é convidada para ir para a delegação de lá, que não existia até então. O curso ficou de lado, numa vida profissional que começava a pedir muito dela, sem nunca deixar de o fazer por completo, recorrendo aos exames para o acabar.
Um percurso que “devagar, devagarinho” tem tudo
“Fiz mesmo de tudo. Estive dez anos na rádio, em que comecei a fazer cultura. Ainda me lembro das primeiras notícias que fiz”. Como um dia alguém disse “a Cultura é o que vivemos” e “mesmo que chegue a pouca gente chega sempre”. E Ana acabou por chegar a muitas pessoas.
Num percurso completo, Ana começou devagar e foi subindo a pulso. “Devagar, devagarinho, fui crescendo e conquistando o meu espaço. Nada me caiu do céu. Consegui tudo muito do meu trabalho”.
Três anos depois de ter entrado para a rádio, Ana Leal chega a enviada especial. É lá que é enviada para a guerra em Sarajevo, na Bósnia e Herzegovina, a guerra mais longa deste século.
Com 21 anos foi enviada para Sarajevo e foi a primeira jornalista portuguesa a chegar àquele cenário de guerra.
Esta experiência não surpreendeu Ana, por um lado, porque já antes de embarcar para esta nova aventura era muito solicitada pela Direção de Informação da Rádio Comercial, com sede em Lisboa, para fazer coberturas importantes na capital. “Não era normal ser destacada uma delegação de província, mas eu já era destacada para fazer isso, se calhar porque fazia um bom trabalho”.
Mesmo já com o destaque que lhe era dado aos 21 anos, Ana não estava a espera de ir para uma guerra como a de Sarajevo, já que não tinha a formação necessária para ser repórter de guerra. Mesmo assim foi escolhida pelo Diretor de Informação da Rádio Comercial na altura, José Paulo Fafe, encarando esta experiência como um novo desafio na sua jovem, mas excitante, carreira.
“Não estava a espera do desafio, completamente à aventura. Eu fiz a viagem Porto-Lisboa com a roupa que tinha no corpo e disse-me, olhos nos olhos: “Estás preparada? Queres? Vais apanhar uma boleia de um C130, da Força Aérea Portuguesa, que vai só fazer ajudar humanitária a Zagreb e a ideia era eu perder a boleia.”
Com todos os aeroportos comerciais fechados, foi desta maneira arriscada que Ana chega à Zagreb e lá tenta encontrar uma maneira de chegar a Sarajevo, o coração da guerra. Sem roupas e dinheiro, Ana testou-se a si mesma nesta guerra. “Era eu e um gravador na mão”. Em Zagreb, sozinha, vê-se obrigada a arranjar uma forma de chegar a Sarajevo, dado que nem os capacetes azuis da ONU se arriscavam a ir para lá.
Com a missão de chegar a Sarajevo, ela consegue alugar um carro para chegar ao foco da guerra, com a ajuda de uma família, que na altura, por causa dos snipers, ninguém queria, porque eles eram rapidamente destruídos. “Fiz-me à estrada, sozinha, até Sarajevo”.
Quando chega a Sarajevo acontecem os bombardeamentos de Mostard, onde fica dada como desaparecida durante três dias. Por causa destes bombardeamentos, não era possível estabelecer comunicações. “Sei que a minha família achou que eu tinha morrido. O próprio Diretor também, porque a minha mãe telefonava para a rádio e ele não sabia o que havia de dizer porque há três dias que eu não dava sinal de vida”.
Nesta guerra, mais do que uma experiência, Ana confrontou-se consigo mesma; com os seus medos e com os seus próprios limites. “Foi a experiência que mais me marcou a todos os níveis. Foi um desafio imenso: desde me confrontar com o medo de morrer até pensar como vou contornar estes obstáculos”.
A morte era um destino fácil que Ana teve de contornar algumas vezes. Sobreviver num cenário de guerra como o que presenciou em Sarajevo não se avizinhava uma tarefa fácil. “Foi o cenário de guerra mais real onde estive. Havia bombardeamentos todos os dias; corpos amontoados nas ruas; não podíamos andar nas ruas normalmente por causa dos snipers e por isso foi uma experiência única e marcante”.
Ana confessou um dos momentos que mais a marcou nesta guerra: “Eu tenho problemas com vertigens e quase atração pelo abismo, não consigo estar num prédio normal numa varanda a olhar cá para baixo. Lembro-me perfeitamente na tomada de Mostard, apanhei a destruição da ponte que ligava duas partes da cidade e depois põem uma ponte em corda alternativa, com o rio cá em baixo e lembro-me de que aquilo foi um momento dramático para mim porque foi confrontar-me com a altura, pensar que ia morrer, que não conseguia, mas tinha de vencer esse medo e consegui. Tem de ser a nossa parte racional a funcionar e muito o nosso instinto de sobrevivência. Eu não quero morrer e tenho de conseguir”.
Depois deste confronto com uma guerra dura e crua, chegava a altura de voltar para casa, mas nem esse regresso foi fácil. “Foi uma viagem em que demorei 6 dias, onde foi muito difícil do ponto de vista emocional e depois foi pensar: ‘Como é eu agora tenho coragem para regressar e fazer este percurso todo para trás para ir para casa?’ Viver isto tudo sozinha, muito nova, com medo…chorei, mas no final fiz um bom trabalho, tanto que voltei mais três vezes à Bósnia, já também pela televisão”.
Todos os medos que enfrentou nunca a fizeram meter em causa o trabalho que tinha ido para lá desempenhar e no final regressava uma Ana Leal com 21 anos, com o mesmo gravador na mão, com um trabalho para mostrar e uma mente desafiada até ao limite do ser humano.
Depois de ser enviada para muitos cenários de guerra, chegou a altura de abandonar este lado mais excitante da carreira de um jornalista.
Ser mãe mudou-a não só enquanto pessoa mas também enquanto profissional. O nascimento de Afonso foi a razão para Ana mudar o rumo da sua carreira, sem, com isso, desistir dela. “Quando nasceu o meu filho Afonso achei que não devia ir mais”.
Até aqui era só a Ana, uma jovem jornalista à procura de histórias para contar ao mundo. Agora era uma nova Ana: a mãe. “Apesar de esta ser a área do jornalismo que mais gozo me dava e que eu adorava, quando o Afonso nasceu achei que não podia continuar a ser egoísta e pensar que era aquilo que me dava prazer na vida. Tudo muda com o nascimento de um filho”. E tudo mudou.
No seu trabalho ser mãe não a mudou radicalmente, mas há reportagens que mexem mais consigo, como foi o caso da reportagem que fez sobre os pais que perdem filhos. “Tive momentos de angústia em que pensei que não queria continuar a fazer aquela reportagem e que só queria chegar a casa para abraçar o meu filho, portanto claro que um filho muda em muito, porque é uma dor que nem eu consigo imaginar. Ninguém consegue”.
Apesar de o filho ser o amor da sua vida, Ana não viveu a gravidez como uma grávida costuma viver, porque durante a mesma, acompanhou o caso Casa Pia. “Estava a vivenciar tanto aquela reportagem que acho que me esqueci de que estava grávida”. Durante os dois anos de investigação, Ana viveu só para esse caso. “As investigações têm este problema, que é o desgaste imenso se queremos ser os melhores e dar exclusivos”.
Em cada palavra carregava a tristeza de não ter vivido a sua única gravidez como uma grávida deve viver. “No dia em que o Afonso nasceu eu estive a trabalhar até às 2 da manhã”, não se lembrando de que iria dali a poucas horas dar à luz, tanto era o seu envolvimento naquela investigação. “Eu não estava com uma investigação nas mãos a pensar que estava grávida. Foi precisamente o contrário”. “Eu desliguei completamente da minha gravidez. Eu vivi até ao limite (a investigação)”. Por isso é que, depois de dar à luz, Ana esteve dois anos de baixa, tal foi o cansaço, tanto físico como psicológico, que teve com uma gravidez pelo meio.
Apesar disto, Ana tem uma relação especial com o filho, que mostra ter algumas caraterísticas suas. A menina dos porquês que se tornou numa mãe deu à luz um pequeno contador de histórias.
Com apenas 10 anos, Afonso já diz que quer ser jornalista ou escritor. Assim como a mãe, começa a dar os seus pequenos passos para um futuro que poderá ser entre as letras, sejam elas encantadas ou factuais. Como a mãe diz, Afonso “escreve lindamente e tem uma criatividade acima da média. Imagina imensas histórias, portanto acho que pode ser um excelente contador de história e pode ser um bom jornalista, porque um jornalista é isso mesmo: um contador de histórias”.
Mesmo sem querer que o filho siga o seu caminho para o jornalismo, é com o orgulho de mãe babada que fala do filho e dos seus sonhos de criança.
Falar do filho é falar de um amor que não se explica nem se expressa em palavras. É um amor que está no brilho do seu olhar e no sorriso que não esconde. Jornalismo é uma paixão, mas ser mãe foi voltar a nascer com outra vontade para a vida; foi trazer ao mundo uma parte de si, com asas próprias para um dia voar e ser feliz.
O trabalho e as críticas
No trabalho, o que mais a preocupa é que as famílias que fazem parte da reportagem gostem quando ela for para o ar. É isso que mexe mais consigo, o facto de aquelas pessoas, que fizeram o seu trabalho ganhar vida, não concordarem com aquilo que ela construiu.
Quando é acusada de perseguir o poder e outro tipo de críticas associadas aos poderes, Ana é concisa: "resolve-se em tribunal. “A verdade é que passo a vida em tribunais, sou processada muitas vezes e ainda não perdi nenhum caso”. Ana justifica isto com o trabalho rigoroso que executa, sem se deixar influenciar por cores partidárias ou poderes. Investiga a fundo e traz o nome que tiver de ser, seja primeiro-ministro ou outro cargo qualquer. “Eu limito-me a fazer o melhor que sei e a investigar quando alguém tem de ser investigado”.
A família questiona-a constantemente porque “se mete sempre em chatices” ao que Ana responde, com persistência e firmeza, que “quando o deixar de fazer, é porque mudei de profissão”. “Quando perceberem que sou outra coisa qualquer na vida é porque desisti de ser jornalista, porque enquanto o for não consigo ter outra postura que não seja a de questionar, questionar muitas coisas”.
Acreditar sozinha mas sem desistir
É esta postura que Ana teima em manter e que sente que falta no jornalismo atual. Como a própria diz, o jornalismo vive uma crise de valores e identidade. “Temos pés de microfone. Vive-se com medo de se ser despedido”. O mesmo medo que Ana tem, mas que não a condiciona na sua forma de fazer jornalismo.
É assim que Ana é feliz, a fazer o jornalismo em que acredita, mas que faz de uma maneira solitária. Um caminho que nos últimos anos se tem mostrado cada vez mais difícil e que leva a jornalista a questionar-se muitas vezes se deve continuar ou não.
“Cada vez me revejo menos neste jornalismo”. Cada vez há menos pessoa como Ana a fazer jornalismo de investigação como ela, a questionar tudo e todos, a ir mais além sem medo do que esse além traz.
Mesmo não sendo a única a fazer este tipo de jornalismo, são cada vez menos pessoas como ela a fazerem-no e isso entristece-a. Nunca pensou quando entrou para esta vida na flor dos seus 18 anos que seria este tipo de jornalismo que viveria 25 anos depois.
“Andam todos a reboque. Já ninguém tem coragem de se fazer o que se fazia há uns anos atrás, que era investigação própria”. É esta realidade jornalística que Ana vê diariamente.
O jornalismo diferente que faz todos os dias e do qual não abdica faz com que, como a própria admite, seja um alvo a abater e que seja “uma pessoa que os diretores de informação queiram ter”.
A reportagem e a professora
“Sou uma pessoa muito emocional e o meu desafio é não passar muito isso para as minhas reportagens”. Apesar de tentar conter a sua emoção, não concorda que o jornalista não se envolva na sua reportagem. Pelo contrário, Ana acha que só mergulhando no tema que está a investigar é que consegue transmitir aos telespectadores as emoções vividas pelos seus protagonistas.
Apesar de a investigação pura e dura, pela sua durabilidade, a desgastar muito, Ana não se vê a ser jornalista sem a fazer. Mas, ao mesmo tempo, precisa de “fazer cinema” nas suas reportagens sociais, que lhe dão paz, dado que tenta trazer temas de esperança, que transmitam essa mensagem e nos façam pensar menos na materialidade das coisas. “Eu preciso desse oxigénio. Cada reportagem que vivo é uma aprendizagem para mim do ponto de vista humano, emocional e do ponto de vista de eu própria ficar a refletir sobre o que aprendi e vivenciei”.
“Um bom jornalista tem de ser uma boa pessoa na vida real”, por isso a Ana Leal jornalista não se distingue da Ana Leal pessoa. A forma como lida com a vida, com o jornalismo e com as pessoas é a mesma esteja na posição de jornalista ou na de 'pessoa'.
O outro lado que também lhe dá ânimo na vida é o facto de ser professora. “Eu adoro dar aulas. Nas fases menos boas da minha vida, dar aulas é outro balão de oxigénio. Que bom que é transmitir vivências a esta geração. É como projetar nestas gerações a esperança no futuro”. Um futuro em que Ana não se mostra muito esperançosa, mas espera ver nestes alunos a razão para acreditar.
Para a professora é um orgulho quando ouve os repórteres de imagem dizerem-lhe que determinado jornalista deve ter sido seu aluno, porque vem com certezas daquilo que quer fazer e não parece que foi atirado aos lobos. “Confesso que dá-me imenso gozo ver isso. Sinto que fiz alguma coisa que pode mudar o jornalismo e sinto que valeu a pena dar aulas e que ficou lá alguma coisa”.
Do ecrã para o lar
Quando está a trabalhar, Ana tem de aguentar a pressão, as ameaças e o desgaste, mas quando chega a casa “desliga o botão”, porque o filho não tem de ver em si o cansaço da carreira. Em casa Ana Leal é a mãe de Afonso. Ainda assim, não esconde o seu trabalho do filho, que vê as suas reportagens, mas tenta sempre dar o lado positivo das mesmas.
No filho espera que ele um dia veja que “a mãe contou histórias maravilhosas e que conseguiu fazer alguma coisa para mudar as coisas que estavam mal. Ele ter orgulho na mãe por ter conseguido mudar alguma coisa” É isto que Ana sonha que o filho sinta um dia: o orgulho na mãe e na profissional que nunca mudou nestes 25 anos de carreira.
O seu percurso não tem sido fácil e cada vez menos o é. A carreira que sonhou ter não foi um sonho cor-de-rosa, mas ainda não escureceu o suficiente para desistir. A paixão que tem pelo jornalismo ainda está em si e é essee amor ao jornalismo que ainda a faz percorrer este caminho, com muitos altos e baixos, mas ainda sem um fim.
Aos 46 anos Ana Leal mostra já uma expressão cansada mas continua a ter a mesma dedicação à carreira que abraçou há 25 anos atrás.