Anabela Mota Ribeiro nasceu em Trás-os-Montes 3 anos antes do 25 de abril de 1974. Tem 43 anos e há 20 que é jornalista freelance. Licenciou-se em Filosofia na Universidade Nova Lisboa.
Foi autora e apresentadora de programas de televisão da RTP. Trabalhou em rádio e foi correspondente da Antena 1 em Londres entre 2007 e 2008. Atualmente escreve para o Público e o Jornal de Negócios. Mensalmente, organiza e modera um debate sobre livros, na Bertrand do Chiado.
O género a que mais se tem dedicado é a entrevista. Em 2003 publicou um livro com 14 entrevistas, “O Sonho de um Curioso”. Em maio do ano passado criou o blog http://anabelamotaribeiro.pt, onde coloca todos os seus trabalhos.
A sua flor favorita é a papoila, porque é delicada, bonita e não precisa de ninguém para crescer. Tem medo de cães e deteste atrasos. Esforça-se por chegar sempre a horas, porque só assim consegue organizar a sua vida como freelance.
Começamos a entrevista numa mesa do jardim do Príncipe Real, com os ramos das árvores a fazer sombra do sol. Nessas mesas, lá para a tardinha os senhores costumam jogar às cartas.
Bárbara Mota: Na entrevista que fez à Teresa Caeiro, deputada do CDS-PP, disse: “Triste mundo este onde uma mulher não pode ir ao cabeleireiro e fazer madeixas que logo passa a loira burra”.
Anabela Mota Ribeiro: Penso que Portugal é ainda uma sociedade machista. Já não é um machismo ostentatório, orgulhoso, mas é um machismo subterrâneo. A mudança racional e a mudança de mentalidades é uma coisa lenta e é possível detetar ainda em muitos comportamentos e em muitas atitudes resquícios desse machismo, que era dominante até há umas décadas atrás.
BM: Nasceu em 1971, nos finais do regime.
AMR: Nesse tempo, as mulheres ainda precisavam da autorização do marido para sair do país. O homem era o chefe de família e a mulher só o podia ser quando ficasse viúva e só podiam votar quando fossem chefes de família ou licenciadas. Estamos a falar de uma sociedade que não há muito tempo atrás ainda tinha estas marcas. Muitas das pessoas que foram educadas antes de mim foram educadas assim, a pensar desta maneira, e isso não muda de um momento para o outro.
BM: E isso ainda se nota hoje na sociedade?
AMR: Sim. Apesar dos altos extraordinários que foram dados ao nível das mentalidades e do acesso das mulheres a alguns cargos e à educação, há ainda muitos vestígios subterrâneos dessa desigualdade.
BM: Celebrámos este ano 41 anos de liberdade e continuam a existir sinais de um atraso de mentalidades que denunciam a influência de uma ditadura prolongada.
AMR: O atraso de mentalidades não era sinónimo da ditadura, mas a sua expressão. Era a situação ditatorial que promovia este quadro social. Mas uma coisa não era sinónimo da outra E a prova disso é que temos 41 anos de democracia e ainda há vestígios desse atraso.
BM: Mas a lei agora protege a mulher.
AMR: Agora já não há, legalmente, situações como tínhamos antes do 25 de abril em relação às mulheres. Hoje está escrito que as mulheres podem votar. Do ponto de vista legal, a mudança é total. Hoje ninguém pensa dizer a uma mulher que não pode votar porque não é chefe de família ou licenciada. Mas há 41 anos atrás era. Maria Teresa Horta, que é uma grande poeta e feminista, tinha frequentado a universidade mas não tinha concluído a licenciatura e só votou pela primeira vez em 1975.
BM: Apesar destas mudanças esse machismo está lá.
AMR: Quando eu falo dos sinais subterrâneos desse machismo e que a mudança de mentalidades, apesar dos muitos progressos, não é total, basta olhar para o número de mulheres em cargos de poder nas empresas. Nas empresas é muito evidente. Quais são as mulheres presidentes de bancos ou de grandes empresas cotadas em bolsa? (silêncio)
BM: Quando entrevistou a Teresa Caeiro, deputado do CDS-PP, estava a falar de uma mulher com poder.
AMR: Estava a falar de uma mulher que é politica, e hoje há um número cada vez maior de mulheres na política, mesmo assim sem hegemonia em relação aos homens. Basta olhar para o governo e para a composição dele, onde são mais homens do que mulheres. E aí há ainda muitos passos a dar.
BM: E como é que a mulher pode mudar isso?
AMR: Existe ainda o estigma de que as mulheres não podem ser bonitas e inteligentes ao mesmo tempo. É como se as mulheres bonitas fossem uma espécie de adereço que existe para embelezar e as feias e desleixadas, aquelas que se dedicam completamente à carreira, que passam muito tempo na biblioteca, são outras. E estes são sinais de uma sociedade machista que eu ainda encontro.
BM: Isso deve-se ao facto também de muitas das pessoas do tempo da ditadura não terem morrido e não se mudam as mentalidades tão depressa…
AMR: Vão evoluindo… Muitas das pessoas que estavam vivas no 25 de abril estão ainda vivas. E essa mentalidade não muda de um momento para o outro. As pessoas não acordam e passam a ser outras. Mas há uma mudança gradual e basta olhar para a composição da família hoje e para coisas que antes eram olhadas com desconfiança. As novas conceções forame entrando gradualmente e hoje é uma coisa banal, como as uniões de facto. Há 40 anos atrás, estas constituíam uma minoria e hoje são consideradas uma banalidade. A maioria dos pais hoje já não fica indignado quando os filhos assumem uma relação sem passar pelo formalismo do casamento.
BM: E o jornalismo tem contribuído para essa mudança?
AMR: As mudanças ocorrem por diversos canais e a comunicação social é um deles. Mas a ficção é um elemento muito poderoso. As pessoas que veem novelas, novelas, novas formas de viver e novas formas de estarem umas com as outras, acabam por se contaminar pelo que veem. Isso vai-se inscrevendo paulatinamente ou como se fosse uma grande explosão naquilo que é o quadro de vida das pessoas. Nesse sentido, a comunicação social é mais um dos agentes da mudança. Não é o único mas é importante.
BM: Como é que o jornalismo a mudou ao longo de todos estes anos?
AMR: Acho que sou uma pessoa diferente depois de ter conhecido tantas pessoas e de ter ouvido tantas histórias. Ao longo destes anos, quer para rádio, quer para televisão, quer para imprensa, eu dialoguei com muitas pessoas, de muitas áreas do saber, do fazer, de muitas faixas etárias, e a diversidade de histórias e de registos é incrível. A diversidade das próprias pessoas é incrível. É incrível como podemos ser humanos e, por isso, também iguais em tantas coisas, e depois temos a nossa singularidade. É fascinante oscultar e perceber essa singularidade de cada pessoa e ser tocado por isso. Isso vai-nos influenciando, vai-nos fazer interrogar sobre nós mesmos.
BM: Quando entrevista alguém no que pensa?
AMR: No momento da entrevista tento abstrair-me de quem sou, da minha história. Naquele momento o palco é do entrevistado. E é pensar no que tenho curiosidade de conhecer naquela pessoa.
BM: Mesmo não pensando em si, a entrevista acaba por influenciá-la.
AMR: Claro que vamos interagindo com os outros e vamos interrogando-nos sobre o que nós somos.
BM: Conheceu-se a conhecer os outros?
AMR: Também. Há sempre qualquer coisa que fica dessa relação com o outro. Mas não quero ser perentória e dizer que me conhecia a conhecer os outros. Conheci-me a conhecer os outros também.
BM: Então onde se conheceu mesmo?
AMR: Conheço-me sobretudo na relação com aqueles que me são mais próximos. E nesse núcleo está a minha família e os amigos.
BM: Quem é a Anabela Mota Ribeiro por detrás do papel de entrevistadora?
AMR: Quando criei o meu blog, que serve sobretudo de arquivo dos meus trabalhos, fui-me confrontando com trabalhos que fiz há quase 20 anos, outros que fiz há 2 anos e outros que fiz ontem e percebi que são coisas desiguais. Nós vamos aprendendo e, com isso, sendo outros.
BM: Quem está nessas páginas do blog?
AMR: Sobretudo, está lá uma pessoa com disponibilidade para os outros. Acho que a Anabela que entrevista é uma jornalista que quer ouvir os outros e as respostas às perguntas que faz.
BM: E que pessoa é essa que ouve e quer ouvir?
AMR: É uma pessoa curiosa, mas isso quase todos os jornalistas são, por isso não tem grande originalidade. (risos) Acho que sou curiosa de quem o outro é e tenho uma disponibilidade para o ouvir. É uma espécie de célula primordial. O resto vem a seguir.
BM: A preparação da entrevista em si?
AMR: Sim, o que me faz fazer umas perguntas e não outras, mas no começo o que existe é essa disponibilidade.
BM: Foi por essa curiosidade que decidiu dedicar-se mais ao género de entrevista?
AMR: É um dos elementos. O outro é muito prático. Eu trabalho há muitos anos como freelance e foi sendo mais fácil para mim organizar-me na relação com os meus eventuais empregadores (os jornais, sobretudo) fazendo entrevistas do que reportagens. E foi sendo mais fácil também porque como a entrevista é um músculo que eu fui exercitando e por isso foi ficando mais sobre desenvolvido do que outros e é um registo onde me sinto mais à vontade.
BM: E isso também vale para o suporte em que fazemos jornalismo.
AMR: Sim, há pessoas que fazem melhor rádio, outras na televisão e outras escrevem melhor. Não nos torna melhor do que os outros; torna-nos diferentes e é muito importante quando nós conseguimos perceber qual é esse nosso talento primordial. E é muito quando temos condições para o exercitar.
BM: Mas teve sempre essas condições.
AMR: Não. Eu também comecei por fazer de tudo. Durante muitos anos fiz tudo e acho que isso é uma escola extraordinária e se calhar é mesmo assim que deve ser: polivalente.
BM: Ser versátil?
AMR: Sim.
BM: Versatilidade. Uma palavra muito longa. Precisamos de ser muito longos para fazer muita coisa e ter uma carreira?
AMR: Quando estamos a começar é muito bom aprendermos a fazer de tudo, sabermos fazer tudo e estarmos uns anos assim. É a única maneira de aprendermos verdadeiramente, de nos testarmos e de errarmos muito, muito, muito, quando estamos nessa fase. O que interessa é saber como nos levantamos no dia seguinte. É importante estarmos uns anos a fazer de tudo, a baixar a bolinha, porque também temos vontade de fazer logo coisas extraordinárias e é muito difícil ter 20 anos, começar e fazer logo coisas extraordinárias. Há uma maturidade intelectual, profissional e pessoal que só vem com os anos.
BM: Quando é que adquiriu essa maturidade?
AMR: Eu não sei quando é que atingi essa maturidade. Claro que olho hoje para uma coisa que faço agora e acho que é de uma mulher madura e tento manter uma certa audácia. Isto não quer dizer que um trabalho meu agora seja melhor do que um de há 10 anos. Às vezes corre bem, mesmo quando não temos essa maturidade. E às vezes a própria maturidade pode transformar a peça numa coisa banal ou pouco fresca.
BM: É preciso ter audácia?
AMR: Vai parecer uma contradição o que vou dizer com o que disse anteriormente, mas é preciso ter uma audácia, que se tem quando se está a começar que muitas vezes se domestica com os anos. É esta audácia que nos permite perguntar coisas que não perguntarias com 40 anos.
BM: Teve essa audácia?
AMR: Sim. A minha primeira entrevista para imprensa foi com o João César Monteiro, um grande cineasta, e acho que foi uma coisa boa. Foi uma lata da minha parte querer, com 27 anos, entrevista-lo.
BM: E correu bem?
AMR: Correu. Eu gosto muito dessa entrevista, curiosamente. Podia ter-me espalhado ao comprido, como já aconteceu muitas vezes e já madura.
BM: O jornalismo é um trabalho?
AMR: Não. Não. O jornalismo é um emprego. Para muitas pessoas, especialmente aquelas que têm um vínculo laboral com o jornal, têm de entrar às tantas horas e sair às tantas horas. Ou seja, essa ideia romântica de que o jornalismo é um trabalho e não um emprego é para acabar. Jornalismo é um emprego como outro emprego qualquer. Temos de entregar um trabalho até às dez da manha e ele tem de lá estar até às dez da manha. Não é quando nos vier a inspiração. Não. É naquela data. E essa ideia de rigor tem muito mais a ver com a ideia de emprego.
BM: Mas muitos têm essa ideia.
AMR: Claro que nós temos a ideia romântica de que, sobretudo quando estamos a começar, quando estamos na idade de mudar o mundo, o jornalismo é uma arma para mudar o mundo.
BM: Mas o jornalismo pode ser essa arma.
AMR: É uma das armas, mas não é a única nem quer dizer que vamos mudar o mundo com o jornalismo.
BM: Para si, o jornalismo é um trabalho ou um emprego?
AMR: O jornalismo é um trabalho e é um emprego. Depende do vínculo que as pessoas têm e depende muito também de como entendem o que estão a fazer.
BM: No seu caso, nunca se vinculou.
AMR: Não, mas apesar disso eu tenho uma relação muito estável com os jornais com os quais trabalho. Com o jornal Negócios eu colaboro há nove anos. Eu não sou da casa formalmente mas sou da casa, porque sou sentida assim e sinto-me assim. Com o Público colabora há seis e é a mesma sensação. Portanto, não tenho um contrato formal, mas tenho uma relação constante com os sítios para os quais trabalho.
BM: Porquê que nunca se quis vincular a nenhum jornal? Não é mais difícil ser freelance?
AMR: Quando eu comecei a trabalhar na Rádio Nova acho que foi o único período da minha vida em que estive vinculada a uma empresa de comunicação social. Dos 25 anos para cá tenho trabalhado sempre como freelance em rádio, televisão e imprensa. Acabou por ser mais fácil para mim trabalhar para vários suportes e diferentes órgãos de comunicação social e fazer a gestão do meu tempo assim. Eu gosto de estar dentro da minha cabeça e gosto bastante de fazer as coisas sozinha em casa e isto acabou por ser um sistema possível. Claro que há desvantagens, como não ter um salário fixo ao final do mês, mas por outro lado podemos fazer coisas como decidir que agora ao meio-dia estou aqui consigo ou que ontem estava a moderar um debate numa biblioteca em Castro Verde. E essa sobreposição de tarefas pode ser mais difícil quando pertencemos a uma redação e estamos alinhados numa máquina.
BM: E nunca pensou duas vezes, tendo em conta a imprevisibilidade financeira a que está sujeita?
AMR: O dinheiro é importante, mas nunca pensei. Eu trabalhei sempre em cários sítios e assim conseguia equilibrar e não ter uma dependência em relação a um órgão de comunicação social.
BM: Voltando ao país, somos um país que esqueceu a cultura e os velhos nomes?
AMR: Não, não acho nada. Existem vários planos: o político e a maneira como a cultura é considerada a essa nível e parece-me grave ter deixado de existir ministério da cultura para passar a ser uma secretaria de Estado, com um orçamento muito mais reduzido e isto traduz um desinvestimento político. Outra coisa é a maneira como a cultura se dissemina na nossa vida e o lugar que ela tem na vida das pessoas e aí parece-me que ela não é desconsiderada. Manuel Alegre está agora a festejar 50 anos do Praça da Canção, livro que o lançou, e todos sabem o que é este livro.
BM: É uma questão de pessoa para pessoa.
AMR: O lugar que a cultura ocupa depende das pessoas, mas é como tudo. Para umas pessoas a cultura tem uma dimensão importante, para outras não. Para umas a saúde é um tema dominante, para outras é a economia. As pessoas são diferentes. E é também possível ser duas coisas: médico e poeta. Lembra-me um grande poeta, que é cirurgião plástico, João Luís Barreto Guimarães, que se especializou em reconstrução mamária. É uma surpresa ver um cirurgião plástico ser poeta e ele é um grande poeta.
BM: Estranha-se por não ser comum?
AMR: É a coisa das caixinhas. Tu és isto e não és aquilo é para acabar. As pessoas são muito mais plurais, complexas, contraditórias e ricas do que nós pensamos.
Foi autora e apresentadora de programas de televisão da RTP. Trabalhou em rádio e foi correspondente da Antena 1 em Londres entre 2007 e 2008. Atualmente escreve para o Público e o Jornal de Negócios. Mensalmente, organiza e modera um debate sobre livros, na Bertrand do Chiado.
O género a que mais se tem dedicado é a entrevista. Em 2003 publicou um livro com 14 entrevistas, “O Sonho de um Curioso”. Em maio do ano passado criou o blog http://anabelamotaribeiro.pt, onde coloca todos os seus trabalhos.
A sua flor favorita é a papoila, porque é delicada, bonita e não precisa de ninguém para crescer. Tem medo de cães e deteste atrasos. Esforça-se por chegar sempre a horas, porque só assim consegue organizar a sua vida como freelance.
Começamos a entrevista numa mesa do jardim do Príncipe Real, com os ramos das árvores a fazer sombra do sol. Nessas mesas, lá para a tardinha os senhores costumam jogar às cartas.
Bárbara Mota: Na entrevista que fez à Teresa Caeiro, deputada do CDS-PP, disse: “Triste mundo este onde uma mulher não pode ir ao cabeleireiro e fazer madeixas que logo passa a loira burra”.
Anabela Mota Ribeiro: Penso que Portugal é ainda uma sociedade machista. Já não é um machismo ostentatório, orgulhoso, mas é um machismo subterrâneo. A mudança racional e a mudança de mentalidades é uma coisa lenta e é possível detetar ainda em muitos comportamentos e em muitas atitudes resquícios desse machismo, que era dominante até há umas décadas atrás.
BM: Nasceu em 1971, nos finais do regime.
AMR: Nesse tempo, as mulheres ainda precisavam da autorização do marido para sair do país. O homem era o chefe de família e a mulher só o podia ser quando ficasse viúva e só podiam votar quando fossem chefes de família ou licenciadas. Estamos a falar de uma sociedade que não há muito tempo atrás ainda tinha estas marcas. Muitas das pessoas que foram educadas antes de mim foram educadas assim, a pensar desta maneira, e isso não muda de um momento para o outro.
BM: E isso ainda se nota hoje na sociedade?
AMR: Sim. Apesar dos altos extraordinários que foram dados ao nível das mentalidades e do acesso das mulheres a alguns cargos e à educação, há ainda muitos vestígios subterrâneos dessa desigualdade.
BM: Celebrámos este ano 41 anos de liberdade e continuam a existir sinais de um atraso de mentalidades que denunciam a influência de uma ditadura prolongada.
AMR: O atraso de mentalidades não era sinónimo da ditadura, mas a sua expressão. Era a situação ditatorial que promovia este quadro social. Mas uma coisa não era sinónimo da outra E a prova disso é que temos 41 anos de democracia e ainda há vestígios desse atraso.
BM: Mas a lei agora protege a mulher.
AMR: Agora já não há, legalmente, situações como tínhamos antes do 25 de abril em relação às mulheres. Hoje está escrito que as mulheres podem votar. Do ponto de vista legal, a mudança é total. Hoje ninguém pensa dizer a uma mulher que não pode votar porque não é chefe de família ou licenciada. Mas há 41 anos atrás era. Maria Teresa Horta, que é uma grande poeta e feminista, tinha frequentado a universidade mas não tinha concluído a licenciatura e só votou pela primeira vez em 1975.
BM: Apesar destas mudanças esse machismo está lá.
AMR: Quando eu falo dos sinais subterrâneos desse machismo e que a mudança de mentalidades, apesar dos muitos progressos, não é total, basta olhar para o número de mulheres em cargos de poder nas empresas. Nas empresas é muito evidente. Quais são as mulheres presidentes de bancos ou de grandes empresas cotadas em bolsa? (silêncio)
BM: Quando entrevistou a Teresa Caeiro, deputado do CDS-PP, estava a falar de uma mulher com poder.
AMR: Estava a falar de uma mulher que é politica, e hoje há um número cada vez maior de mulheres na política, mesmo assim sem hegemonia em relação aos homens. Basta olhar para o governo e para a composição dele, onde são mais homens do que mulheres. E aí há ainda muitos passos a dar.
BM: E como é que a mulher pode mudar isso?
AMR: Existe ainda o estigma de que as mulheres não podem ser bonitas e inteligentes ao mesmo tempo. É como se as mulheres bonitas fossem uma espécie de adereço que existe para embelezar e as feias e desleixadas, aquelas que se dedicam completamente à carreira, que passam muito tempo na biblioteca, são outras. E estes são sinais de uma sociedade machista que eu ainda encontro.
BM: Isso deve-se ao facto também de muitas das pessoas do tempo da ditadura não terem morrido e não se mudam as mentalidades tão depressa…
AMR: Vão evoluindo… Muitas das pessoas que estavam vivas no 25 de abril estão ainda vivas. E essa mentalidade não muda de um momento para o outro. As pessoas não acordam e passam a ser outras. Mas há uma mudança gradual e basta olhar para a composição da família hoje e para coisas que antes eram olhadas com desconfiança. As novas conceções forame entrando gradualmente e hoje é uma coisa banal, como as uniões de facto. Há 40 anos atrás, estas constituíam uma minoria e hoje são consideradas uma banalidade. A maioria dos pais hoje já não fica indignado quando os filhos assumem uma relação sem passar pelo formalismo do casamento.
BM: E o jornalismo tem contribuído para essa mudança?
AMR: As mudanças ocorrem por diversos canais e a comunicação social é um deles. Mas a ficção é um elemento muito poderoso. As pessoas que veem novelas, novelas, novas formas de viver e novas formas de estarem umas com as outras, acabam por se contaminar pelo que veem. Isso vai-se inscrevendo paulatinamente ou como se fosse uma grande explosão naquilo que é o quadro de vida das pessoas. Nesse sentido, a comunicação social é mais um dos agentes da mudança. Não é o único mas é importante.
BM: Como é que o jornalismo a mudou ao longo de todos estes anos?
AMR: Acho que sou uma pessoa diferente depois de ter conhecido tantas pessoas e de ter ouvido tantas histórias. Ao longo destes anos, quer para rádio, quer para televisão, quer para imprensa, eu dialoguei com muitas pessoas, de muitas áreas do saber, do fazer, de muitas faixas etárias, e a diversidade de histórias e de registos é incrível. A diversidade das próprias pessoas é incrível. É incrível como podemos ser humanos e, por isso, também iguais em tantas coisas, e depois temos a nossa singularidade. É fascinante oscultar e perceber essa singularidade de cada pessoa e ser tocado por isso. Isso vai-nos influenciando, vai-nos fazer interrogar sobre nós mesmos.
BM: Quando entrevista alguém no que pensa?
AMR: No momento da entrevista tento abstrair-me de quem sou, da minha história. Naquele momento o palco é do entrevistado. E é pensar no que tenho curiosidade de conhecer naquela pessoa.
BM: Mesmo não pensando em si, a entrevista acaba por influenciá-la.
AMR: Claro que vamos interagindo com os outros e vamos interrogando-nos sobre o que nós somos.
BM: Conheceu-se a conhecer os outros?
AMR: Também. Há sempre qualquer coisa que fica dessa relação com o outro. Mas não quero ser perentória e dizer que me conhecia a conhecer os outros. Conheci-me a conhecer os outros também.
BM: Então onde se conheceu mesmo?
AMR: Conheço-me sobretudo na relação com aqueles que me são mais próximos. E nesse núcleo está a minha família e os amigos.
BM: Quem é a Anabela Mota Ribeiro por detrás do papel de entrevistadora?
AMR: Quando criei o meu blog, que serve sobretudo de arquivo dos meus trabalhos, fui-me confrontando com trabalhos que fiz há quase 20 anos, outros que fiz há 2 anos e outros que fiz ontem e percebi que são coisas desiguais. Nós vamos aprendendo e, com isso, sendo outros.
BM: Quem está nessas páginas do blog?
AMR: Sobretudo, está lá uma pessoa com disponibilidade para os outros. Acho que a Anabela que entrevista é uma jornalista que quer ouvir os outros e as respostas às perguntas que faz.
BM: E que pessoa é essa que ouve e quer ouvir?
AMR: É uma pessoa curiosa, mas isso quase todos os jornalistas são, por isso não tem grande originalidade. (risos) Acho que sou curiosa de quem o outro é e tenho uma disponibilidade para o ouvir. É uma espécie de célula primordial. O resto vem a seguir.
BM: A preparação da entrevista em si?
AMR: Sim, o que me faz fazer umas perguntas e não outras, mas no começo o que existe é essa disponibilidade.
BM: Foi por essa curiosidade que decidiu dedicar-se mais ao género de entrevista?
AMR: É um dos elementos. O outro é muito prático. Eu trabalho há muitos anos como freelance e foi sendo mais fácil para mim organizar-me na relação com os meus eventuais empregadores (os jornais, sobretudo) fazendo entrevistas do que reportagens. E foi sendo mais fácil também porque como a entrevista é um músculo que eu fui exercitando e por isso foi ficando mais sobre desenvolvido do que outros e é um registo onde me sinto mais à vontade.
BM: E isso também vale para o suporte em que fazemos jornalismo.
AMR: Sim, há pessoas que fazem melhor rádio, outras na televisão e outras escrevem melhor. Não nos torna melhor do que os outros; torna-nos diferentes e é muito importante quando nós conseguimos perceber qual é esse nosso talento primordial. E é muito quando temos condições para o exercitar.
BM: Mas teve sempre essas condições.
AMR: Não. Eu também comecei por fazer de tudo. Durante muitos anos fiz tudo e acho que isso é uma escola extraordinária e se calhar é mesmo assim que deve ser: polivalente.
BM: Ser versátil?
AMR: Sim.
BM: Versatilidade. Uma palavra muito longa. Precisamos de ser muito longos para fazer muita coisa e ter uma carreira?
AMR: Quando estamos a começar é muito bom aprendermos a fazer de tudo, sabermos fazer tudo e estarmos uns anos assim. É a única maneira de aprendermos verdadeiramente, de nos testarmos e de errarmos muito, muito, muito, quando estamos nessa fase. O que interessa é saber como nos levantamos no dia seguinte. É importante estarmos uns anos a fazer de tudo, a baixar a bolinha, porque também temos vontade de fazer logo coisas extraordinárias e é muito difícil ter 20 anos, começar e fazer logo coisas extraordinárias. Há uma maturidade intelectual, profissional e pessoal que só vem com os anos.
BM: Quando é que adquiriu essa maturidade?
AMR: Eu não sei quando é que atingi essa maturidade. Claro que olho hoje para uma coisa que faço agora e acho que é de uma mulher madura e tento manter uma certa audácia. Isto não quer dizer que um trabalho meu agora seja melhor do que um de há 10 anos. Às vezes corre bem, mesmo quando não temos essa maturidade. E às vezes a própria maturidade pode transformar a peça numa coisa banal ou pouco fresca.
BM: É preciso ter audácia?
AMR: Vai parecer uma contradição o que vou dizer com o que disse anteriormente, mas é preciso ter uma audácia, que se tem quando se está a começar que muitas vezes se domestica com os anos. É esta audácia que nos permite perguntar coisas que não perguntarias com 40 anos.
BM: Teve essa audácia?
AMR: Sim. A minha primeira entrevista para imprensa foi com o João César Monteiro, um grande cineasta, e acho que foi uma coisa boa. Foi uma lata da minha parte querer, com 27 anos, entrevista-lo.
BM: E correu bem?
AMR: Correu. Eu gosto muito dessa entrevista, curiosamente. Podia ter-me espalhado ao comprido, como já aconteceu muitas vezes e já madura.
BM: O jornalismo é um trabalho?
AMR: Não. Não. O jornalismo é um emprego. Para muitas pessoas, especialmente aquelas que têm um vínculo laboral com o jornal, têm de entrar às tantas horas e sair às tantas horas. Ou seja, essa ideia romântica de que o jornalismo é um trabalho e não um emprego é para acabar. Jornalismo é um emprego como outro emprego qualquer. Temos de entregar um trabalho até às dez da manha e ele tem de lá estar até às dez da manha. Não é quando nos vier a inspiração. Não. É naquela data. E essa ideia de rigor tem muito mais a ver com a ideia de emprego.
BM: Mas muitos têm essa ideia.
AMR: Claro que nós temos a ideia romântica de que, sobretudo quando estamos a começar, quando estamos na idade de mudar o mundo, o jornalismo é uma arma para mudar o mundo.
BM: Mas o jornalismo pode ser essa arma.
AMR: É uma das armas, mas não é a única nem quer dizer que vamos mudar o mundo com o jornalismo.
BM: Para si, o jornalismo é um trabalho ou um emprego?
AMR: O jornalismo é um trabalho e é um emprego. Depende do vínculo que as pessoas têm e depende muito também de como entendem o que estão a fazer.
BM: No seu caso, nunca se vinculou.
AMR: Não, mas apesar disso eu tenho uma relação muito estável com os jornais com os quais trabalho. Com o jornal Negócios eu colaboro há nove anos. Eu não sou da casa formalmente mas sou da casa, porque sou sentida assim e sinto-me assim. Com o Público colabora há seis e é a mesma sensação. Portanto, não tenho um contrato formal, mas tenho uma relação constante com os sítios para os quais trabalho.
BM: Porquê que nunca se quis vincular a nenhum jornal? Não é mais difícil ser freelance?
AMR: Quando eu comecei a trabalhar na Rádio Nova acho que foi o único período da minha vida em que estive vinculada a uma empresa de comunicação social. Dos 25 anos para cá tenho trabalhado sempre como freelance em rádio, televisão e imprensa. Acabou por ser mais fácil para mim trabalhar para vários suportes e diferentes órgãos de comunicação social e fazer a gestão do meu tempo assim. Eu gosto de estar dentro da minha cabeça e gosto bastante de fazer as coisas sozinha em casa e isto acabou por ser um sistema possível. Claro que há desvantagens, como não ter um salário fixo ao final do mês, mas por outro lado podemos fazer coisas como decidir que agora ao meio-dia estou aqui consigo ou que ontem estava a moderar um debate numa biblioteca em Castro Verde. E essa sobreposição de tarefas pode ser mais difícil quando pertencemos a uma redação e estamos alinhados numa máquina.
BM: E nunca pensou duas vezes, tendo em conta a imprevisibilidade financeira a que está sujeita?
AMR: O dinheiro é importante, mas nunca pensei. Eu trabalhei sempre em cários sítios e assim conseguia equilibrar e não ter uma dependência em relação a um órgão de comunicação social.
BM: Voltando ao país, somos um país que esqueceu a cultura e os velhos nomes?
AMR: Não, não acho nada. Existem vários planos: o político e a maneira como a cultura é considerada a essa nível e parece-me grave ter deixado de existir ministério da cultura para passar a ser uma secretaria de Estado, com um orçamento muito mais reduzido e isto traduz um desinvestimento político. Outra coisa é a maneira como a cultura se dissemina na nossa vida e o lugar que ela tem na vida das pessoas e aí parece-me que ela não é desconsiderada. Manuel Alegre está agora a festejar 50 anos do Praça da Canção, livro que o lançou, e todos sabem o que é este livro.
BM: É uma questão de pessoa para pessoa.
AMR: O lugar que a cultura ocupa depende das pessoas, mas é como tudo. Para umas pessoas a cultura tem uma dimensão importante, para outras não. Para umas a saúde é um tema dominante, para outras é a economia. As pessoas são diferentes. E é também possível ser duas coisas: médico e poeta. Lembra-me um grande poeta, que é cirurgião plástico, João Luís Barreto Guimarães, que se especializou em reconstrução mamária. É uma surpresa ver um cirurgião plástico ser poeta e ele é um grande poeta.
BM: Estranha-se por não ser comum?
AMR: É a coisa das caixinhas. Tu és isto e não és aquilo é para acabar. As pessoas são muito mais plurais, complexas, contraditórias e ricas do que nós pensamos.
Mudamos de sítio, mas sem sair do enorme jardim no Príncipe Real. Anabela encontra a grande árvore centenária do jardim e lá nos sentamos, debaixo dos seus ramos, num banco.
BM: Voltemos à Anabela e retrocedemos 40 anos atrás. Que criança era?
AMR: (pausa) Tento manter muito viva dentro de mim a criança que fui.
BM: Porquê?
AMR: Porque talvez isso represente uma atenção ao mundo e de disponibilidade para o mundo e para as pessoas.
BM: Já em adulta, leu o principezinho ao telefone com a sua irmã e isso permitiu-lhe conhecê-la mais intimamente.
AMR: Permitiu-me conhecer uma parte dela. Eu li-o uma vez com a minha irmã e nos comentários que ela ia fazendo do principezinho permitiam-me conhecê-la muito intimamente, mas não foi o que me deu um retrato íntimo da minha irmã. Li outros livros com ela e em comentários que ela fazia também o descobri. Mas percebi dessa vez (quando leram o principezinho) que é diferente perguntar ‘como correu o teu dia na escola’ ou perguntar a propósito de um livro ‘o que tu fazia nesta situação’ e isso de repente pode mudar tudo e a pessoa revelar muito mais de si fora dessa resposta ‘na escola fiz isto e aquilo’ e de repente quando nós perguntamos ‘o que farias’ ou ‘como reagirias’ pomos a pessoa a pensar e não a relatar.
BM: Quão importante é relação com a sua irmã?
AMR: Eu tenho 3 irmãos, um irmão e duas irmãs. Esta é 20 anos mais nova do que eu. A minha relação com os meus irmãos é essencial na minha vida. Os irmãos são, durante muito tempo, e num tempo fundamental da nossa vida, as pessoas com quem nós mais vivemos, com quem mais interagimos. Eles e os pais. Mesmo quando as pessoas não têm uma boa relação com os irmãos, eles são pessoas de dentro delas, em anos muito importantes da vida delas.
BM: Ler o principezinho é como voltar à infância?
AMR: Ler o principezinho é uma forma e comunicarmos com a criança que fomos. É aquele espanto, uma palavra que eu associo imediatamente à infância e que quase caiu em desuso. Espantarmo-nos com as coisas, elas causarem-nos surpresa. É como se olhássemos pela primeira vez, que é uma coisa que se pensa que acontece em criança, precisamente quando estamos a descobrir, a ver pela primeira vez. E é muito difícil continuar a ver pela primeira vez depois de já termos visto.
BM: É dessa maneira que tenta manter viva a criança dentro de si?
AMR: Sim. É tentar encontrar uma maneira de continuarmos a ver como se fosse a primeira vez. Continuarmo-nos a espantarmo-nos com as coisas, como se as víssemos pela primeira vez. Continuarem a despertar em nós esse deslumbramento com o mundo.
BM: Alguma vez os seus pais criticaram o facto de querer ser jornalista? Nunca a tentaram levar por outro caminho?
AMR: Não, isso não. É verdade que não até porque fui sendo jornalista. Não foi propriamente uma determinação ‘eu vou ser jornalista’. Olhando para trás, era evidente que eu seria jornalista, porque tem a ver com as minhas caraterísticas pessoais e com o que fui fazendo.
BM: Mas não seguiu o curso de comunicação social. Licenciou-se em Filosofia.
AMR: Eu estudei Filosofia mas muito antes disso a minha primeira matrícula, mesmo que não tenha feito nada, foi em Direito.
BM: E como é que chega ao jornalismo?
AMR: Foi um conjunto de situações que me levaram a onde estou hoje.
BM: E como é que a Filosofia pode entrar no jornalismo?
AMR: A Filosofia relaciona-se com o questionamento do mundo. É uma pergunta pelo sentido: ‘O que é isto? Que sentido é que isto faz?’ e “isto” é o mundo; “isto” a existência. E isso é uma espécie de pergunta motora que está connosco enquanto indivíduos. E enquanto indivíduos que exercem uma profissão, ela está subjacente a quem somos e ao que fazemos. A Filosofia, assim como a Literatura e os Estudos Portugueses, é uma mais-valia para o jornalismo.
BM: E onde está essa mais-valia?
AMR: A Filosofia, mas também a Literatura e os Estudos Portugueses, são ferramentas que nos ensinam a pensar e a lidar com uma ferramenta fundamental que é a língua. O importante é pensar as coisas e ter ferramentas para as pensar.
BM: E a Filosofia deu-lhe essas ferramentas?
AMR: Eu já era jornalista quando fui estudar Filosofia, mas eu acho que a Filosofia me ajuda a pensar sobre as coisas e isso acaba por ter influência no modo como faço as coisas.
BM: Voltando ao principezinho. A meio, ele diz que “sempre em frente não se pode ir longe”. É preciso haver curvas na vida para se ir mais longe?
AMR: Muito sábio o principezinho! Eu acho que é mesmo isso. Nós quando olhamos bem para os nossos caminhos vemos que eles não são linhas retas.
BM: Mas nós quando somos pequenos achamos que o caminho vai ser sempre direito.
AMR: Sim, mas é preciso contar com as dificuldades e a tirar partido delas. Estou a ter uma conversa que me faz lembrar o discurso do Pedro Passos Coelho e das oportunidades que veem com a crise, que eu abomino, mas isto é diferente.
BM: Como?
AMR: Lembro-me muitas vezes do Jorge Luís Borges, um escritor argentino, que cegou a partir de uma fase da sua vida. Quando começou a vida profissional não só não estava cego como ia trabalhar todos os dias para a biblioteca, que era uma repartição pública. Nos primeiros dias, o seu superior disse-lhe que ele queria fazer muitas coisas e que tinha tempo e que era preciso ele encaixar-se naquela estrutura. Ele percebeu que ia estar uns anos assim e que a maneira de viver bem com aquilo era concentrar a ideia dele numa outra coisa e concentrou-se livros que podia ler entre o caminho de casa para o trabalho e na volta. Li qualquer coisa dele como ‘o melhor desses anos é o tempo que eu tinha para ler no elétrico entre casa e o trabalho’. Isto é interessante, porque todos nós nos enfadamos com as coisas e frustramo-nos quando as coisas não correm bem, mas às vezes nós podemos pôr o foco noutro sítio.
BM: Onde tem o seu foco?
AMR: Eu não deixo que alguma coisa me incomode até certo ponto. O meu foco está aqui e não ali.
BM: E ultrapassa as dificuldades assim?
AMR: Não queria meter as coisas assim, mas eu acho que nos podemos salvar a nós mesmos se pusermos a atenção noutro sítio. É uma maneira estoica de aguentar e lidar com aquilo que corre mal. Todos nós devemos ter os nossos refúgios.
BM: Onde é que se refugia?
AMR: Os nossos refúgios são sempre os outros, as pessoas com quem mais lidamos.
BM: O principezinho dizia que se descrevermos uma casa que tem adereços muito bonitos o adulto não vai valorizá-la, mas se lhe dissermos que vale quinhentos mil euros ele já vai dizer que a casa é muito bonita. Acha que é assim que se olha para as coisas?
AMR: É o olhar com espanto. Isso é um olhar para as coisas pelo seu valor intrínseco e não para o valor monetário. Mas existe esta coisa que se chama realidade que se vai impondo e que muitas vezes nos faz esquecer dessa coisa que era mágica que era o espanto de ver pela primeira vez para uma coisa que não tem valor material mas que tem valor para nós, porque criamos um laço com ela. É isso que o principezinho diz.
BM: E é isso que tenta sempre fazer?
AMR: Eu acho que essa deve ser a nossa luta: fazer com que esta vida, que é assim mesmo e para todos, não ocupe o espaço todo e que ainda haja um bocadinho de magia.
BM: Tenta olhar sempre pela primeira vez?
AMR: Claro! Quando eu chego aqui e olho para esta árvore, onde venho quase todos os dias e me maravilho com ela, é uma forma de me alimentar desta beleza. Tento sempre olhar para as coisas como se fosse a primeira vez.